Muita gente (para não dizer 99% das pessoas) tem dúvida se deve ou não consumir soja — uma das pouquíssimas fontes vegetais de proteína completa, porém, com a suspeita de bagunçar nossos hormônios e, pior, provocar o aparecimento de câncer de mama. Mas vale ressaltar que nem tudo o que se tem dito de ruim sobre o grão foi comprovado pela ciência. Ao contrário: a maioria das acusações não passam de mito, segundo o médico e estudioso sobre o assunto Lucas Caseri Câmara, autor do livro Soja – Hormônios e Câncer, publicado pela editora Lura. Neste bate-papo com a VegMag, Lucas esclarece, a partir de dados científicos, as dúvidas mais comuns em torno do alimento. Assim, você pode decidir se o grão merece (ou não) fazer parte da sua alimentação. Mas ele adianta: “Talvez seja mais danoso você comer mais carne do que soja. É o que demonstram claramente os estudos”.
(VEG MAG) Seu livro desmistifica boa parte dos mitos da soja em relação à saúde. Acha que isso pode ajudar a desfazer a imagem negativa que foi criada em torno do grão?
(Dr. Lucas Caseri Câmera) Os mitos foram criados a partir de estudos isolados ou relatos de casos que não confirmam a possibilidade de a soja ter sido a causa dos problemas de saúde apresentados pelas pessoas analisadas. Além disso, a maior parte dos estudos foi feita em animais para verificar alterações hormonais e outros efeitos colaterais. Os roedores costumam ser as principais cobaias, mas eles têm um metabolismo das isoflavonas (fito-estrógenos presentes na soja) diferente de nós. E, ao longo de toda a história da literatura científica, muitos efeitos observados em animais não foram constatados em humanos, e vice-versa. Por isso eu espero que as informações contidas no meu livro possam, sim, desmistificar e derrubar a maioria dos mitos construídos em torno da soja sem uma base científica adequada.
(VM) Há uma quantidade pré-determinada para a ingestão segura de soja ou o consumo pode ser livre?
(Dr. Lucas) Não existe uma regra mas, o mínimo para que as isoflavonas possam proporcionar efeitos positivos, é de uma a três porções por dia. Mais do que isso pode ser demais, assim como é demais tomar suco de laranja ou comer amendoim em todas as refeições. O consumidor também deve levar em consideração o formato como o alimento entra na alimentação: recomendo soja em grão, edamame (soja verde) e derivados, como tofu e leite de soja. Já os alimentos industrializados em que a soja é combinada a vários ingredientes, devem ser evitados ou consumidos esporadicamente.
(VM) Você dá a entender que o excesso deve ser evitado. Mas se a pessoa exagerar: mesmo assim ela pode ter mais benefícios que prejuízos?
(Dr. Lucas) Qualquer alimento em excesso é ruim. Portanto, a soja deve fazer parte de uma alimentação balanceada, mas não ser a base do cardápio. É isso que precisa ficar claro. Existem estudos na literatura científica em que as pessoas avaliadas tomavam cerca de três litros de leite de soja por dia e, então, começaram a apresentar efeitos colaterais. A culpa não foi da soja, mas da dose excessiva. De qualquer maneira, os benefícios promovidos pelas substâncias presentes no grão sempre superam os possíveis prejuízos.
(VM) Quais são os principais nutrientes da soja?
(Dr. Lucas) Comparada com outras leguminosas, a soja é uma das pouquíssimas que tem proteína completa, com todos os aminoácidos que o organismo necessita, e menos carboidrato. Oferece gordura insaturada (a gordura considerada boa), fibras, ferro e cálcio — esses dois últimos nutrientes, assim como a proteína, são mais difíceis de serem encontrados em um cardápio vegetariano ou vegano e, por isso, o grão é tão bem-vindo para quem não come carne e outros alimentos de origem animal. Ele ainda contém vitaminas (B2, B3 e E), minerais (fósforo, magnésio) e as isoflavonas — conhecidos com fito-estrógenos, já que a estrutura molecular desses compostos é próxima ao do hormônio estrogênio. Dependendo do local do cultivo da soja, a concentração de fito-estrógenos varia de 100 a 130 miligramas a cada 100 gramas do grão.
(VM) A ciência comprova a associação entre a soja e o câncer mama?
(Dr. Lucas) Sim. Mas, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, a associação é de prevenção: o consumo regular da soja ajuda a proteger contra o câncer de mama e de próstata também, ambos tumores estrógeno dependentes. Isso é possível porque as isoflavonas competem com o estrogênio pelo mesmo receptor existente na célula tumoral. E, por terem uma ação menos potente, elas amenizam ou bloqueiam a ação do hormônio e, com isso, evitam que o tumor progrida. Aliás, está documentado na literatura científica que a soja não só ajuda a reduzir o tumor como evitar em até 50% o aparecimento da doença.
(VM) A soja fermentada (missô, shoyu) é mais saudável do que a in natura?
(Dr. Lucas) Existem pesquisas mostrando que a soja fermentada é melhor que o grão in natura; outros afirmam o contrário. Ou seja, ainda não há evidências suficientemente fortes para afirmarmos qual desses dois formatos é o mais saudável. Já o demolho, usado para eliminar os chamados fatores antinutrientes do grão, está sendo questionado. Eles impedem de o organismo absorver os nutrientes importantes da soja. Porém, pesquisas recentes, têm apontado funções benéficas em algumas dessas substâncias. E, à medida que o consumo do alimento se torna regular, o nosso organismo se adapta aos antinutrientes e deixa de apresentar tanto problema em relação à absorção.
(VM) E as pessoas que são intolerantes às substâncias da soja?
(Dr. Lucas) Elas realmente não podem ingerir o grão (os sintomas são diarréia, cólicas, distensão abdominal, náuseas e vômitos). Mas, quem não tem esse tipo de problema, pode consumir sem se preocupar com os rumores de que a soja provoca prejuízos à saúde. Não há nenhum estudo comprovando isso, mas tem muita documentação afirmando que, dentro de uma alimentação balanceada, o alimento melhora o metabolismo da gordura corporal, equilibra a glicemia (açúcar no sangue) e estimula o funcionamento do intestino.
(VM) O mesmo vale para a soja transgênica?
(Dr. Lucas) Apesar da má fama, não existe nenhuma certeza científica de que a soja transgênica provoque danos ao nosso organismo. Pode ser que, daqui a 30 anos, a gente descubra que ela não é mesmo saudável ou, então, fique sabendo que nos preocupamos à toa. Mas, até o momento, afirmar que o grão transgênico faz mal é um erro científico, já que a ciência ainda não respondeu isso direito. O que nós precisamos é exigir mais estudos para que se possa chegar a um resultado conclusivo.
(VM) A soja transgênica pode ser orgânica?
(Dr. Lucas) Pode. A indústria de alimentos Ecobras, por exemplo, faz uma série de produtos (tofu, maionese, hambúrguer) à base de soja orgânica e não transgênica. Já a bebida Ades, marca da Coca-Cola, é preparada com o grão não transgênico (está especificado na embalagem), mas não necessariamente orgânico. Para oferecer produtos com preços mais baixos, a maior parte dos fabricantes de alimentos trabalha com a soja não orgânica e transgênica — o tipo mais cultivado e acessível no Brasil.
(VM) Para quem pode escolher, a soja orgânica e não transgênica é melhor, certo?
(Dr. Lucas) Sem dúvida, sim. Porém, os estudos populacionais realizados na China, onde o consumo de soja supera o de outros países, não associam o grão transgênico e cultivado com pesticidas ao aparecimento de câncer ou a alterações hormonais. Mais do que os pesticidas da soja, o consumidor deve ficar atento com a quantidade de agrotóxicos no morango, no tomate e no pimentão, já que o grão cresce dentro de uma vagem e, por isso, acumula menos veneno do que a polpa desses outros alimentos. A preocupação deve ser ainda maior para quem consome carne, pois as toxinas dos pesticidas ficam acumuladas no tecido gorduroso do animal. Ok, o gado é alimentado com soja mas, diferentemente das porções (de duas a três) sugeridas para os humanos, ele devora mais de 15 quilos do grão por dia. Portanto, comer a carne acaba sendo bem mais danoso para a saúde do que comer a planta. E isso a ciência também tem bem documentado: não param de sair estudos alertando sobre a necessidade de reduzirmos o consumo de alimentos de origem animal, principalmente a carne, por causa da bioacumulação de toxinas. Fazer essa inversão no prato, colocar mais soja do que carne (para quem come, claro), ajudaria também salvar nossas florestas.
(VM) Como essa inversão no prato pode ajudar a preservar as nossas florestas?
(Dr. Lucas) Hoje, cerca de 50% da soja produzida no país é direcionada para exportação, mais de 40% para alimentar o gado e outros animais e o pouco que resta encaminhado para a indústria de alimentos. O ideal seria que a maior parte ficasse por aqui e fosse reservada para o consumo humano. Assim, o Brasil não precisaria desmatar tanto as nossas florestas para o plantio do grão. E isso também seria bom para todo o planeta.